Sob pressão de investidores externos e grandes empresas nacionais após evidências de que o desmatamento em 2020 deve superar o recorde do ano passado, o presidente Jair Bolsonaro recorreu a dados falsos e distorcidos em live na noite desta quinta-feira (16) para atacar países europeus.
Na transmissão, pelas redes sociais, Bolsonaro reciclou alguns de seus hits sobre o tema (“muita terra para indígenas”, “a Europa não protege suas florestas”, “interesses comerciais contra o agro brasileiro”) e lançou alguns novos, como a ideia de que as queimadas não têm relação com o desmatamento.
A única proposta ambiental defendida em mais de uma hora de transmissão foi a Medida Provisória 910, derrubada na Câmara e transformada em Projeto de Lei, que resultaria em anistia para invasões de terras e desmatamentos ocorridos até a campanha de 2018, segundo especialistas e o Ministério Público Federal. Na live, Bolsonaro estava acompanhado de Nabhan Garcia, ruralista secretário de Assuntos Fundiários do Ministério da Agricultura e artífice da MP.
O discurso de Bolsonaro contraria recentes manifestações do ministro da Economia, Paulo Guedes, e do vice-presidente Hamilton Mourão, responsável pelo Conselho da Amazônia, sobre desmatamento e agronegócio. Veja o que disse o presidente e onde ele errou.
“Reserva legal só existe no Brasil”
FALSO
Há pelo menos 11 países que possuem legislações florestais rigorosas. Segundo um estudo comparativo feito sobre o tema no Brasil, de 2011, de autoria do Imazon e da ProForest, Reino Unido e Índia são dois exemplos de países onde a reserva legal – entendida como a porção de florestas numa propriedade privada – é ainda mais rigorosa que no Brasil. Enquanto aqui proprietários podem desmatar 80% de sua propriedade na maioria dos biomas (exceto na Amazônia, onde o limite é de 65% para áreas de cerrado e 20% para áreas de floresta), indianos e britânicos são totalmente proibidos de desmatar em suas áreas florestais. No Japão, onde 59% das florestas está em propriedades privadas, a lei também veda inteiramente o desmatamento. Na França, a conversão de mais de 4 hectares é totalmente proibida. Na Alemanha e nos países escandinavos, a extração de madeira é permitida, mas com recomposição. Todos esses países têm financiamento à manutenção de florestas e ao reflorestamento.
“A Europa… lá é uma seita ambiental.”
FALSO
A Europa é um continente, delimitado a leste pela Ásia, a sul pelo mar Mediterrâneo, a norte pelo oceano Ártico e a oeste pelo oceano Atlântico.
“Eles não preservaram nada no seu ambiente. Quase não se ouve falar em reflorestamento na região e atiram o tempo todo para cima de nós.”
FALSO
A Europa é um continente sem “fronteira agrícola”, onde as florestas estão em franco e contínuo processo de expansão. Segundo dados da FAO compilados pelo site Our World in Data, a Europa ganha por ano 0,37% de florestas desde 1990, enquanto as Américas, puxadas pelo Brasil, perdem 0,25% ao ano. Desde 1990, a Europa ganhou 90 mil quilômetros quadrados de cobertura florestal, o equivalente a um Portugal, enquanto o Brasil perdeu, apenas na Amazônia, mais de 370 mil quilômetros quadrados, ou quatro Portugais. Três países europeus, a Suécia (69%), a Finlândia (73%) e a Eslovênia (62%) têm mais florestas que o Brasil (59%) como proporção do território. . Dados da FAO/ONU mostram que países europeus como Alemanha, Polônia e Grécia têm proporção do território em áreas protegidas maior que a do Brasil. Alemanha protege 38% do território, a Polônia 40% e a Grécia, 35%. Já o Brasil, 29%.
“É uma briga comercial também. No passado havia um interesse enorme pela região amazônica e hoje o interesse é em todo o Brasil.”
FALACIOSO
Os países que mais pressionam pelo controle do desmatamento no Brasil são os europeus, que compram nossos produtos agrícolas, e não nossos concorrentes diretos, como EUA (aliado ideológico do governo atual), Austrália e Argentina. Empresas desses países que usam commodities manchadas pela ilegalidade perdem consumidores e valor de mercado. Um estudo publicado no periódico Science no dia 16 de julho mostrou que 17% da carne e 20% da soja exportadas para a Europa pelo Brasil contém desmatamento em sua cadeia. Pela lógica da concorrência, países europeus que são fortes produtores agropecuários, como França e Irlanda, deveriam apoiar o desmatamento no Brasil, pois isso lhes confere vantagens de mercado – mas não o fazem.
A alegação de interesses comerciais disfarçados é antiga e ressurge sempre que o Brasil é criticado por não cuidar de suas florestas. Em 1988, por exemplo, quando houve outro escândalo internacional envolvendo queimadas, esse argumento foi usado por defensores da grilagem e do desmatamento. Então, como agora, nenhuma evidência foi apresentada, porque nenhuma existia.
“Ouso dizer, na média entre focos de calor e queimadas, que há uma diferença grande entre uma coisa e outra… nós estamos abaixo da média dos últimos anos.”
VERDADE, MAS…
Como as queimadas têm forte correlação com o desmatamento, e o desmatamento foi elevado até 2005 na Amazônia, a média histórica de queimadas é “inflada” por refletir esse passado. Outro fator é a mudança climática, que causou duas secas recordes na Amazônia em 2005 e 2010, além de uma estiagem anormal em 2007 (ano de desmatamento baixo), o que também elevou a média de focos de calor. A média de focos na região nos últimos 22 anos foi de 109 mil focos, puxada para cima por anos como 2004 (218 mil) e 2010 (134 mil). Em 2019 foram 89 mil focos de queimada detectados pelo Inpe no bioma Amazônia. A despeito de o ingrediente climático não ter sido agudo em 2019, o número de focos de calor em 2019 foi intenso e adiantado em um mês: houve 81% mais focos até agosto do que a média entre 2011 e 2018
“Sobre alertas de calor, que existem, por parte do Inpe, 90% acontecem em áreas já desmatadas. É área que todo ano dificilmente não vai ter o homem ali pra limpar o terreno usando de queimadas.”
INVERIFICÁVEL
Bolsonaro cita neste trecho da live dados de um suposto estudo do pesquisador da Embrapa Evaristo de Miranda. No entanto, até a conclusão desde post, o estudo só existia num infográfico de uma reportagem da TV Bandeirantes, da qual Miranda é consultor. Na ausência de um estudo que explique a metodologia usada, não é possível avaliar como ele chegou a essa cifra. Fakebook.eco solicitou à Embrapa cópia do estudo, que ainda não havia sido enviada até a publicação deste post.
Grande parte das queimadas na Amazônia de fato ocorrem em áreas já desmatadas. Por uma razão aritmética simples: a Amazônia tem quase 800 mil quilômetros quadrados desmatados, e a cada ano o incremento do desmatamento representa uma fração pequena disso. No ano de 2019, o desmatamento adicional (10,1 mil km2) representou pouco mais de 1% da área total desmatada (798,4 mil km2).
Mas o argumento de que queimadas na Amazônia não estão vinculadas com desmatamento, difundido por Miranda, é falso.
A variação do número de queimadas na Amazônia é explicada por dois fatores: desmatamento e seca. Nos últimos 22 anos, desde que se iniciou a série histórica de monitoramento de queimadas, todos os anos de recorde de fogo (mais de 150 mil focos) também foram anos de recorde de desmatamento – exceto 2007, ano em que houve uma seca tão forte que, mesmo com o desmate em queda, as queimadas explodiram. Nas regiões de fronteira agrícola, com desmatamento, 80% das queimadas estão relacionadas à derrubada de florestas, segundo uma nota técnica do Inpe. Em 2020, de acordo com a mesma análise do Inpe, 50% das queimadas até junho foram diretamente causadas por desmatamento. No documento, os pesquisadores alertam que, “sem a contenção imediata do desmatamento, as queimadas proliferarão, com ou sem um clima mais seco”. E são taxativos: “É evidente que a intensificação do processo de desmatamento, observado este ano, resultará diretamente em mais eventos de queimadas na Amazônia em 2020.”
A correlação entre fogo e desmatamento é alta porque o desmatamento é um bom indicador do aquecimento da atividade rural. Em anos com expectativa de lucro, como os de aquecimento do mercado de commodities, ou de redução do comando e controle, como os anos eleitorais e o governo Bolsonaro, os produtores rurais aumentam a abertura de áreas e usam mais o fogo para reformar pastagens e os grileiros derrubam e queimam para especular com terra e realizar lucro rapidamente. Em 2019 esse movimento ocorreu: os dez municípios mais desmatados da Amazônia também foram os dez mais queimados até agosto, segundo o Ipam. O gráfico abaixo mostra a correlação entre ocorrência de fogo e desmatamento:
“O indígena, que é o nativo, o caboclo, o ribeirinho, ele faz constantemente isso onde ele mora.”
MEIA-VERDADE
O fogo é usado como instrumento agropecuário por todos, de grandes produtores a indígenas. No entanto, segundo análise do Ipam (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia), a maior parte das queimadas do ano passado foram feitas em propriedades privadas médias e grandes (31%), em áreas devolutas – frequentemente griladas – (30%) e em assentamentos de reforma agrária (21%). Apenas 7% foram registradas em terras indígenas.
“Onde existe floresta amazônica e o homem existe legalmente na terra 80% é reserva legal. Não se pode fazer nada, não se faz.”
FALSO
A reserva regal não admite corte raso, mas sua exploração econômica – por exemplo, a extração de madeira ou plantação de cacau – é permitida. De acordo com o artigo 17 do Código Florestal, “admite-se a exploração econômica da Reserva Legal mediante manejo sustentável, previamente aprovado pelo órgão competente do Sisnama [Sistema Nacional de Meio Ambiente].”
“Caso tivesse sido aprovada (a MP 910) essas áreas seriam regularizadas e uma vez detectado no satélite foco de calor ou queimada, seja o que for, teria como saber rapidamente se foi dentro da reserva legal ou não e quem é o dono daquela área e puniria essa pessoa sem problema nenhum.”
CONTRADITÓRIO
Bolsonaro diz em um momento que as queimadas ocorrem em áreas já desmatadas. No outro, que a aprovação da MP 910 (a “MP da Grilagem”) permitiria punir queimadas em reserva legal – ou seja, admite que as queimadas ocorrem por causa do desmatamento.
“Hoje no Brasil temos 14% do território demarcado como reserva indígena. O que a Europa gostaria que fizéssemos é que passasse de 14% para 20% de terras demarcadas. Você simplesmente inviabilizaria o agronegócio no Brasil.”
FALSO
A demarcação de terras indígenas é uma obrigação constitucional que ainda não foi cumprida integralmente pelo governo, e não uma exigência externa. Não há registro de que o bloco europeu tenha feito tal recomendação.
As terras indígenas de fato representam 13,8% do território nacional, segundo o Instituto Socioambiental. São 724 terras, somando 117 milhões de hectares. Mas desse total apenas 487 terras, somando 106 milhões de hectares, estão homologadas, ou seja, cumpriram todas as etapas do processo de reconhecimento. Ainda de acordo com o ISA, 98,25% das terras indígenas estão na Amazônia Legal, região que concentra 10% da produção agropecuária do país, segundo dados do MapBiomas. 90% da produção agropecuária do Brasil está em regiões que têm apenas 1,75% das terras indígenas. Cerca de 21% do território nacional está ocupado por latifúndios – ou seja, as terras indígenas estão longe de ser a maior forma de ocupação de terras no país e certamente não inviabilizam a produção.
Além disso, o próprio governo reconhece que não há necessidade de novas áreas para aumentar a produção agropecuária, e que “mais de 2/3 (do total explorado hoje) se referem a pastagens que podem ser facilmente convertidas em área de produção agrícola”. Em entrevista coletiva no último dia 9/7, o vice-presidente Hamilton Mourão, responsável pelo Conselho da Amazônia, reconheceu que “desmatamento zero e desenvolvimento econômico não são excludentes”.
“Naquela época também tinha incêndio no Brasil. Teríamos como resolver grande parte disso daí se a MP da regularização fundiária tivesse sido votada. E você teria como saber por satélite o foco de incêndio… identifica quem é o dono daquela área. E vê do que foi desmatado se já era uma área permitida para desmatamento.”
FALACIOSO
Segundo especialistas e o Ministério Público, a MP 910, se aprovada como foi proposta pelo governo, resultaria em anistia para invasões de terras públicas e desmatamentos ocorridos até a campanha de 2018, que elegeu Bolsonaro. Agravaria o problema.
Titular terras não significa necessariamente maior controle do desmatamento. Uma análise de todos os alertas de desmatamento de 2019 feita pelo MapBiomas mostrou que dois terços do desmatamento no Brasil ocorreram em áreas que cruzavam pelo menos um Cadastro Ambiental Rural (CAR) – ou seja, é possível saber quem declara possuir a área e punir essa pessoa. Com base nisso, o Ibama criou em 2016 a Operação Controle Remoto, para fiscalizar o desmatamento sem necessidade de ir a campo em todos os casos. Da mesma forma, o desmatamento foi reduzido em 83% entre 2004 e 2012 sem necessidade de mudar a lei de titulação.
A recente obsessão do governo Bolsonaro com a regularização fundiária esbarra no desempenho do próprio governo: nos últimos dez anos, desde a criação do programa Terra Legal (2009), que permitiu a titulação de pequenas propriedades em vistoria, três presidentes titularam em média 3.190 posses na Amazônia por ano usando os instrumentos e a legislação existentes. No primeiro ano do governo Bolsonaro, esse número caiu para seis, segundo dados obtidos pelo Imazon por meio da Lei de Acesso à Informação.
“Ali se ele desmata todo ano não tem problema nenhum. Só que a área ali é tão fértil que se de um ano pro outro não trabalhar quase que volta uma mata nativa novamente ali.”
EXAGERADO
Embora seja verdade que áreas desmatadas e abandonadas na Amazônia tenham rebrota da floresta, estudos mostram que essas florestas secundárias, ou “capoeiras”, estão longe de voltar “quase uma mata nativa”.
Um estudo de 2018 da Rede Amazônia Sustentável, por exemplo, mostrou que capoeiras jovens, de até dez anos, têm 8 toneladas de carbono por hectare, contra 188 toneladas de florestas maduras. Outro estudo mostrou que a diversidade de espécies numa floresta tropical secundária, após 20 anos de crescimento, chega a 80% da original. A composição (ou seja, os tipos de plantas e animais) em 20 anos é apenas 34% da original – e leva séculos para se recuperar. A maior análise feita sobre capoeiras na América Latina, publicada por um grupo internacional em 2016, concluiu que essas florestas levam 66 anos em média para repor 90% da biomassa de uma floresta madura.
“Quando cê desmata novamente lá na frente dizem que tem desmatamento.”
FALSO
O desmatamento só é medido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais em florestas primárias. O sistema Prodes, do Inpe, possui uma “máscara” segundo a qual, uma vez desmatada, a área não volta a ser observada. Portanto, não existe detecção de desmatamento em áreas de rebrota.
O destino das florestas secundárias é conhecido por meio de outros estudos. O TerraClass, da Embrapa e do Inpe, por exemplo, mapeou até 2014 mais de 17 milhões de hectares em regeneração na Amazônia. O MapBiomas também montou um quadro completo de florestas secundárias no Brasil, apontando 44 milhões de hectares em florestas regeneradas no país inteiro.