Na mesma semana em que aderiu ao programa “Adote Um Parque”, lançado no dia 09/02 pelo presidente Jair Bolsonaro, a rede francesa Carrefour colocou à venda em supermercados de pelo menos duas capitais (Manaus e São Paulo) carne de frigoríficos vinculados a fazendas com histórico de desmatamento na Amazônia, segundo levantamento do Greenpeace.
Nesta segunda-feira (01/03), portaria do Ministério do Meio Ambiente divulgou a lista de 132 unidades de conservação da Amazônia incluídas na primeira etapa do “Adote Um Parque”, fixando valores mínimos de referência – o Carrefour foi a primeira empresa a aderir, com promessa de R$ 4 milhões por ano.
O filé mignon, o coração de alcatra, a picanha, a fralda e a costela expostos nas gôndolas nos dias 10 e 11 de fevereiro (além de dois casos em Belém de outubro de 2020) são de frigoríficos com casos já relatados de conexão com desmatamento ilegal, aponta o levantamento, realizado a partir do número de registro das mercadorias no Serviço de Inspeção Federal (SIF).
O SIF é um selo do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento que tem o objetivo de “assegurar a qualidade de produtos de origem animal” e “garantir certificação sanitária e tecnológica para o consumidor brasileiro, respeitando as legislações nacionais e internacionais vigentes”.
O coração de alcatra maturado exposto no supermercado de Flores, em Manaus, é de boi abatido no frigorífico da JBS de Araputanga, em Mato Grosso (SIF 2979).
Investigação da Repórter Brasil mostrou que uma fazenda no município de Jauru (MT) realizou desmatamento ilegal e vendeu animais para o abatedouro da JBS em Araputanga (MT). De acordo com compromissos firmados pela multinacional, a compra dos bois não poderia ter ocorrido.
Na mesma loja de Flores havia uma peça de fralda da JBS de Pimenta Bueno, em Rondônia (SIF 2880).
A Chain Reaction Research já apontou que outros produtos vendidos pelo Carrefour são originários dessa unidade, considerada de alto risco de desmatamento.
O Imazon classificou como “alto” o risco de exposição ao desmatamento da unidade da JBS em Pimenta Bueno: mais de 600 mil hectares de sua zona de compra incluíam áreas embargadas, de desmatamento recente ou com risco de desmatamento.
A JBS é signatária do TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) da Carne, que prevê a proibição do abate de bois criados em terras indígenas, reservas ambientais e fazendas abertas sem licença ambiental ou flagradas com trabalho escravo.
Uma costela exposta no Carrefour do Shopping Eldorado, em São Paulo, é da JBS de Alta Floresta, em Mato Grosso (SIF 4302).
Documentos obtidos pela Pública mostram como um pecuarista enviou quase 2 mil bois para abate nessa unidade da JBS, apesar de Guias de Trânsito Animal (GTAs) indicarem que a maior parte do gado tinha como origem uma fazenda com área embargada de mais de 6.600 hectares.
Já um cupim à venda no Atacadão de Belém (PA), do Grupo Carrefour, é da JBS de Pontes e Lacerda, em Mato Grosso (SIF 51).
Estudo do Greenpeace aponta vínculos entre desmatamento no Parque Estadual Serra Ricardo Franco (MT) com o fornecimento de gado para a JBS de Pontes e Lacerda.
Isso ocorreu após a chamada triangulação ou “lavagem de gado”, quando o animal cresce em uma ou mais fazendas embargadas ou em áreas protegidas, depois é transferido para uma fazenda “ficha limpa” – neste caso, fora do parque.
Um patinho exposto também no Atacadão de Belém é da JBS de Marabá, no Pará (SIF 457).
Investigação do Greenpeace mostrou que, em 2019, a JBS de Marabá recebeu bois da fazenda Bela Vista, que havia recebido animais de outra fazenda cadastrada dentro da Terra Indígena Ituna-Itatá, a mais desmatada naquele ano.
Em 2017, o Ibama embargou e multou a JBS de Marabá após ter identificado carne comprada de fazendas com desmatamento ilegal.
Outra peça de carne à venda no Carrefour do Shopping Eldorado, em São Paulo, é da Marfrig de Várzea Grande, em Mato Grosso (SIF 2015).
A Repórter Brasil investigou um fazendeiro que cria gado em sete propriedades em Mato Grosso e identificou que uma dessas fazendas, no município de Aripuanã (MT), tem 877 hectares embargados pelo Ibama.
A propriedade é apontada como exemplo típico de fornecedora indireta da indústria. Em agosto de 2019 foram transferidos de lá 190 animais para serem engordados em outra fazenda do pecuarista, em Vila Bela da Santíssima Trindade (MT).
No mês seguinte os animais foram vendidos para o abatedouro da Marfrig em Várzea Grande (MT). O fazendeiro já foi multado em R$ 1,8 milhão por desmatamento ilegal.
Na loja do Carrefour de Jandira, também em São Paulo, o filé mignon exposto é da JBS de Santana do Araguaia, no Pará (SIF 1110).
Investigação do Greenpeace mostrou conexão da carne que chegou a este abatedouro com desmatamento na Amazônia. Mais uma vez, por meio da triangulação entre fazendas.
Procurado, o Carrefour não comentou os casos específicos apontados pelo Greenpeace. Mencionou propostas e iniciativas para controlar a carne associada a desmatamento, mas não informou se adotou ou pretende adotar sistema que permita a rastreabilidade de toda a cadeia.
“As fazendas que abastecem os frigoríficos da cadeia de fornecimento do grupo devem respeitar a legislação ambiental e atender às exigências estabelecidas pela política da empresa. Quando inconformidades são identificadas, o fornecedor é bloqueado até adotar medidas corretivas”, afirmou, em nota. Leia a resposta completa aqui.
Sobre o “Adote Um Parque”, o Carrefour informou que “avalia positivamente o programa do governo federal”, sem explicar como o patrocínio foi anunciado antes de o programa existir oficialmente. O anúncio ocorreu menos de três meses após o assassinato de um cliente negro por seguranças do Carrefour em Porto Alegre.
A JBS afirmou não ter como verificar a origem dos produtos sob alegação de que o levantamento do Greenpeace “se baseia em análise superficial e em metodologia totalmente equivocada”. “Como a ONG apresentou apenas fotos de baixa qualidade das embalagens dos produtos citados, a JBS não pôde fazer verificação detalhada para apontar a verdadeira origem de cada produto. Além disso, o fato de um fornecedor ter tido problema ambiental em anos anteriores não implica necessariamente que ele continua impedido de fornecer caso ele tenha equacionado suas pendências ambientais ou sociais.” Na nota, a JBS também afirmou que “todas as propriedades que comercializaram gado estavam, no ato da negociação, em conformidade com nossos critérios socioambientais”, mas reconheceu que, “por não ter acesso às Guias de Trânsito Animal (GTA), documento sigiloso, não tem como confirmar se os fornecedores de seus fornecedores podem ter passivos ambientais”. Leia a resposta completa aqui.
Sem mencionar o frigorífico citado no levantamento do Greenpeace, a Marfrig afirmou que “mantém uma rígida política de compra de animais e um protocolo completo com critérios e procedimentos que são pré-requisitos para a homologação de fornecedores”, reconhecendo que hoje não existe rastreamento completo da cadeia. “É de amplo conhecimento a complexidade da produção pecuária no Brasil e dessa forma entendemos que há a necessidade de se implementar novos mecanismos de monitoramento e rastreabilidade ao longo de toda a cadeia. A Marfrig vem trabalhando desde 2019 nesse sentido e em 2020 lançou o Plano Marfrig Verde+, programa de rastreamento completo da cadeia de fornecimento, incluindo indiretos, tornando-se a primeira empresa do setor a assumir o compromisso público de ter toda a sua cadeia rastreada para a Amazônia até 2025 e também o Cerrado até 2030.” Leia a resposta completa aqui.
Segundo o Imazon, o Brasil tem 128 plantas frigoríficas que são responsáveis por 93% dos abates na Amazônia Legal. A maior parte da produção é destinada ao consumo interno.
Dados do governo federal mostram que 63% da área desmatada na Amazônia é ocupada por pastos para criação de gado.
Em 2009, investigações do Greenpeace e do Ministério Público Federal (MPF) mostraram como a pecuária estava ligada à destruição da floresta. Após pressão da sociedade, os maiores frigoríficos da Amazônia assinaram com o MPF o TAC da Carne e o Compromisso Público da Pecuária, se comprometendo a desenvolver sistemas de monitoramento para excluir de suas listas de fornecedores fazendas que desmatam, usam mão de obra escrava ou ocupam terras indígenas e outras áreas protegidas.
No Compromisso Público foi estabelecido prazo de dois anos (até outubro de 2011) para a empresa signatária “comprovar de forma monitorável, verificável e reportável que nenhum de seus fornecedores indiretos (tais como fazendas de cria e recria envolvidas na cadeia produtiva) e que tenha desmatado no bioma Amazônia após a data de referência deste acordo faz parte de sua lista de suprimento”. São quase dez anos de atraso.
Em 2016, grandes redes como o Carrefour também assumiram políticas de compra de carne bovina com o objetivo de se dissociar do desmatamento, após pressão de consumidores.
Investigação divulgada na última quarta-feira (24/02) pela Repórter Brasil apontou que grandes varejistas como o Carrefour continuam vendendo carne contaminada com desmatamento, apesar de terem se comprometido a adotar uma nova regra criada em 2020 pelo MPF e pela ONG Imaflora com o objetivo de inibir fraudes relacionadas à chamada triangulação ou “lavagem de gado”.
“Nenhum supermercado pode afirmar que toda a carne vendida em suas prateleiras está livre de desmatamento e outras irregularidades, como invasão de áreas protegidas e conflitos por terra. Há uma lentidão evidente por parte dos frigoríficos e supermercados no monitoramento completo da cadeia, mantendo a pecuária como o principal motor de destruição da Amazônia”, afirmou Cristiane Mazzetti, da campanha da Amazônia do Greenpeace Brasil.
Segundo ela, desde que anunciou uma política de desmatamento zero para compra de carne bovina, em 2016, o Carrefour tem sido “pouco transparente e eficiente” e os consumidores “continuam expostos a uma carne contaminada com desmatamento”. “Os escândalos recorrentes envolvendo o setor da pecuária só reforçam a falta de comprometimento de redes varejistas e frigoríficos com a floresta, e não será a participação no programa Adote Um Parque, ao lado de um governo que desmontou os instrumentos de proteção às florestas, que fará avançar a conservação da Amazônia.”