Por mais que o consenso entre os especialistas climáticos sobre o papel da ação humana no aquecimento global seja considerado “óbvio” pela comunidade científica, campanhas sucessivas de desinformação espalham, há décadas, desconfiança para nublar a percepção da sociedade sobre o tema. Uma “petição de cientistas” dos EUA, por exemplo, reúne mais de trinta mil assinaturas endossando a afirmação de que “não há evidência científica convincente de que as emissões de CO2 causarão, em futuro próximo, aquecimentos extremos na atmosfera terrestre”.
O chamado Global Warming Petition Project já foi refutado inúmeras vezes, especialmente por se apoiar nos chamados “falsos especialistas”: segundo o próprio site, apenas 39 dos signatários, ou 0,1%, possuem formação científica em climatologia. Se somados aos que possuem formação em ciências atmosféricas (112 signatários), chega-se a 0,5% do total. Entre os negacionistas climáticos, há quem diga que “menos de 1%” das pesquisas atribuem as mudanças climáticas à ação humana.
O fato, no entanto, é que mais de 99% da literatura científica publicada entre 2012 e 2020 e revisada por pares reconhece a influência da ação humana na crise climática, segundo pesquisa da Universidade de Cornell, dos EUA, publicada em outubro de 2021. Mark Lynas, autor principal do estudo — que analisou quase 90 mil publicações sobre crise climática —, declarou que os dados obtidos fazem do questionamento à existência de consenso na comunidade científica sobre o tema um “caso encerrado”. Segundo o levantamento, não existe debate científico significativo entre os especialistas questionando a mudança climática induzida pela ação humana.
O estudo indica que o consenso acerca da emergência climática resultante da ação humana atualmente é o mesmo existente em relação a temas como a evolução e as placas tectônicas. Foram reunidas e analisadas 88.125 pesquisas revisadas por pares sobre a emergência climática publicadas entre 2012 e 2020. Do total, somente 28 questionavam a influência da ação humana nos fenômenos climáticos contemporâneos, atribuindo-os a “ciclos naturais” ou “raios cósmicos” — algumas das palavras-chave filtradas por algoritmos para identificar as publicações com conteúdos negacionistas.
Entre as instituições, o consenso é também facilmente verificável. O relatório do IPCC, painel da ONU sobre o clima, afirma ser “inequívoco” que a influência humana tenha aquecido a atmosfera, os oceanos e a terra. Já esta lista do setor climático da Nasa, a agência espacial dos Estados Unidos, mostra o endosso do consenso por 18 associações científicas do país. Aqui, neste levantamento do governo da Califórnia, aparecem organizações científicas de todo o mundo que sustentam a posição de que a ação humana é responsável pela mudança climática, inclusive a Academia Brasileira de Ciências.
Consenso aumentou nos últimos anos
Antes disso, o mais difundido estudo sobre o tema, publicado em 2013, apontava para um consenso de 97% na comunidade científica, a partir da análise de quase 12 mil artigos revisados por pares publicados entre 1991 e 2012. A pesquisa mais atual buscou reexaminar a literatura publicada desde então, para averiguar possíveis alterações no consenso científico identificado — e concluiu que ele aumentou.
Na pesquisa de 2013, liderada por John Cook — à época, pesquisador da Universidade de Queensland, Austrália — foram revisados 11.994 resumos de artigos científicos que continham os termos “aquecimento global” ou “mudança climática global”, selecionados a partir de buscas em bancos de dados científicos. Desse total, cerca de um terço (33,6%) expressava diretamente posições acerca do aquecimento global decorrente da atividade humana. Entre eles, 97% concordavam que a ação humana estava provocando o aumento de temperaturas no planeta. Quando o texto completo das publicações foi analisado, o percentual de artigos que expressavam posições sobre o aquecimento global subiu para 66,5% e, destes, 97,2% endossaram o consenso sobre o papel da ação humana no fenômeno.
Em 2016, com o objetivo de produzir uma síntese das publicações sobre o consenso científico quanto às mudanças climáticas, Cook publicou outra pesquisa, elaborada em conjunto com autores de sete estudos sobre o mesmo tema. O “consenso sobre o consenso” concluiu que, a depender dos critérios utilizados para quantificação do consenso entre especialistas, entre 90% e 100% concordam que a atividade humana é responsável pelas mudanças climáticas — a maioria dos estudos chegou ao percentual de 97% entre cientistas climáticos. Além disso, a pesquisa mostrou que, quanto maior o nível de especialização entre os cientistas que tiveram suas publicações examinadas, maior é o consenso sobre o aquecimento global antropogênico.
Percepção pública distorcida
O estudo de 2016 destaca, também, a disparidade entre o consenso científico realmente existente e a percepção da sociedade sobre ele. Segundo os autores, o entendimento da sociedade civil sobre a existência do consenso científico é uma importante porta de entrada, capaz de influenciar a leitura sobre outras questões climáticas e o apoio a políticas públicas para conter a emergência climática.
As vozes negacionistas têm sido bem sucedidas em nublar a percepção pública acerca do consenso científico: nesta publicação, de 2018, Cook e co-autores apontam que a impressão pública é de que somente 67% dos cientistas climáticos concordam quanto ao aquecimento global antropogênico. Neste vídeo produzido pelo Global Change Institute, da Universidade de Queensland, Cook explica o desequilíbrio e faz um exercício prático, entrevistando pessoas nas ruas sobre o consenso científico. O relatório Mudança Climática no Pensamento Americano, baseado em pesquisas conduzidas pelas universidades de Yale e George Mason, mostra que somente 13% dos americanos entendem que o consenso entre cientistas climáticos é maior que 90%.
Para Cook, que atualmente é pesquisador de pós-doutorado na Universidade de Monash, na Austrálila, o abismo entre o consenso realmente existente e a percepção pública a seu respeito tem três principais causas: a falta de acesso à informação, as campanhas que propositalmente espalham desinformação sobre o tema e a predisposição de alguns grupos para duvidar do consenso, a depender de sua orientação político-ideológica — quanto mais conservadores, segundo ele, mais céticos. Em entrevista ao Fakebook.eco, o pesquisador lembrou que nem todo mundo sabe que o consenso é maior que 97%, mesmo que não esteja influenciado por mitos negacionistas: “É por isso que ainda é importante seguir comunicando o alto nível de acordo entre os cientistas climáticos”, disse.
Na publicação The Consensus Handbook, Cook e co-autores apontam que as campanhas de desinformação começaram a lançar dúvidas sobre a opinião dos cientistas acerca do aquecimento global nos anos 1990, quase uma década antes de os cientistas sociais iniciarem pesquisas sobre o tema — o que, junto ao financiamento robusto de grupos economicamente interessados em negar os efeitos da ação humana sobre o clima, ajuda a explicar o “sucesso” de tais campanhas. “De maneira geral, o nível de polarização na sociedade sobre mudança climática é proporcional a quanto um determinado país é dependente de combustíveis fósseis. Isso indica que a desinformação financiada pelas empresas de combustíveis fósseis estimula a polarização sobre mudança climática na sociedade”, afirma Cook.
Reconhecimento do consenso é chave para ação climática
Não é por acaso que os setores economicamente beneficiados por atividades causadoras da mudança climática investem tanto tempo e dinheiro em campanhas de desinformação que têm o consenso científico como alvo. “Quando as pessoas tomam conhecimento de que os cientistas climáticos concordam sobre o aquecimento global causado pela ação humana, elas se tornam mais receptivas a reconhecer a realidade da mudança climática e o papel da humanidade, passando a apoiar mais a ação climática”, diz Cook.
Segundo ele, o apoio público é indispensável para impulsionar a transição para energias renováveis, e o combate à desinformação é central. “Precisamos explicar as técnicas enganosas utilizadas para jogar dúvidas na opinião pública sobre a mudança climática, como o uso de ‘falsos especialistas’ e também a falsa simetria na cobertura midiática”, diz o pesquisador, chamando a atenção para a prática que parece imortal na imprensa de abrir espaço para ouvir o “outro lado” de negacionistas climáticos.